Fato ocorreu há 120 anos na pacata São Luís, e revela os costumes e comportamento da época
* Por: Patricia Cunha
O ano era 1903, início do século 20. O diário Pacotilha - Jornal da Tarde, noticiava na edição 143, do dia 18 de junho, que a cidade de São Luís estava estarrecida com um fato ocorrido na cidade. A edição de número 144 estampava: "Facto sensacional - mulheres trajadas com roupas de homem". O que para os dias de hoje não chama nenhuma atenção, para a época foi um escândalo que culminou com as duas presas e soltas após manifestações de populares.
O fato ocorreu no dia 17 de junho,
há 120 anos, e a reportagem começava
assim: "Desde hontem à noite que a pacata população desta capital
experimenta a sensação de um fato entre nós, raríssimo, qual o que se deu lá
para as bandas do Caminho Grande (antigo nome da Rua Grande, que na época se
estendia até o Canto da Fabril).
A matéria era sobre Constância de
Tal e Maria José (assim identificadas no texto), moradoras de uma casa na Rua
do Passeio, que naquela noite decidiram que iam passear vestidas de trajes e
acessórios, até então, masculinos. Elas passearam sem ser incomodadas, foram
por vários lugares, brincaram, se divertiram sem ser incomodadas, mas ganharão
olhares curiosos. Ao retornarem, alegres e contentes, tudo parecia ir bem. E
como a cumprimentar uma das pessoas que as olhavam curiosas, uma delas tira a
cartola e as tranças, até então escondidas, ficam expostas.
"Isso, para o caso, valeu mais
que uma catástrofe. Uma voz, estridente e aterradora gritou: 'são
mulheres'." Constância a mais velha, ainda tentou se defender do tumulto
que se formou para pegá-las, com uma pequena faca que portava. Afinal, mulheres
vestidas de homem? em que sociedade estávamos? Só que era tarde demais. Outras
pessoas que estavam em um baile perto
dali se juntaram. Elas foram presas e conduzidas ao quartel de São João, pelo músico
Manoel Domingos e outros praças da infantaria estadual.
A cidade era muito pequena e logo se
espalhou a notícia. Assim, várias
pessoas (chamadas de raia miúda) se aglomeraram em frente ao quartel exigindo a
soltura delas. Maria José contou aos
policiais que elas se vestiram assim para que pudessem transitar sem serem
desrespeitadas, fato que já havia ocorrido com elas. Fato é que foram soltas,
com vergonha do ocorrido, mas isso demonstra o preconceito enraizado na
sociedade desde sempre, o medo da mulher de sofrer assedio dos homens, e a
ousadia com que Constância e Maria José encararam as ruas. No dia seguinte,
Pacotilha - Jornal da Tarde, repercutiu o assunto da soltura delas.
"Primeira vez que mulheres
vestiram calças. Você percebe aí, desde
aquela época como era a sociedade. Cometeram fraude..., observe que a polícia
chama estelionato. Olha aí. Foi algo que abalou a sociedade. Hoje as mulheres
nem imaginam a luta que outras mulheres tiveram para se vestir como queriam.
Observe como evoluiu o pensamento", disse o historiador Eulálio Leandro,
responsável pela pesquisa.
Para além do fato de serem julgadas
por usarem calças, está a explicação delas para isso, se sentirem respeitadas.
Para a mestranda de Ciências Sociais, Ana Paula Santos, aí está enraizada a
cultura do machismo, onde essas mulheres precisaram usar de artifícios para se
sentirem livres nas ruas, "Olha o que elas fizeram para poder saírem sem
ser incomodadas. E esse sentimento de incômodo perdura ainda hoje. Muitas
mulheres não vestem o que querem, uma roupa mais curta, um decote, uma roupa
justa, porque sabem que o homem vai
olhar. E o mais grave disso, nem precisa estar usando esses trajes para se
tornar objeto de desejo masculino. Essa cultura machista é algo estrutural e
que precisa ser mudada com educação, em casa e na escola", disse.
Naquela época, mulheres não usavam
calças compridas. Para se ter ideia, em
1800, entrava em vigor em Paris uma lei determinando que as mulheres que
usassem calças em público podiam ser presas pela polícia. Era permitido usar
calças apenas com autorização prévia da polícia. A lei das calças femininas dizia que “as
mulheres transvestidas como homens poderiam ser repreendidas por policiais a
não ser que tivessem autorização especial”.
No fim do século XIX, as mulheres
começaram a aderir à febre dos esportes e dos exercícios físicos. Mas como se
exercitar ou andar de bicicleta com saias pesadas e cheias de camadas? As mais
ousadas (lembremos que a bicicleta teve um papel da bicicleta na emancipação
feminina, leia mais nos links abaixo) começaram a usar um modelo de calça bem
bufante, quase uma saia bifurcada, mas que lhes davam maior liberdade de
movimentos, a chamada bloomer, cujo nome foi uma homenagem à feminista Amelia
Bloomer. Obviamente, a resistência ao uso dessa peça era grande. Mulheres eram
xingadas e agredidas nas ruas por estarem em “trajes masculinos”, o que ocorreu
com as maranhenses Constância e Maria José.
O início da Primeira Guerra Mundial
(1.914-1.918) contribuiu, indiretamente, para a popularização da calça. Se os
maridos, pais, filhos e irmãos tinham de ir para o front, sobrou para as
mulheres a tarefa de trabalhar fora de casa. O resultado? Uma dose maior de
independência, liberdade para circular sozinha pelas ruas e participar de
atividades esportivas.
. Para se ter ideia, a primeira vez que
uma mulher teve permissão para usar calça comprida no Plenário do Senado foi há
duas décadas. O uso do traje era proibido até 1997, quando um ato do então
presidente, senador Antônio Carlos Magalhães (1927-2007), permitiu a entrada e
a permanência de mulheres com essa vestimenta. O uso também foi liberado nas
salas das comissões, na sala do café dos senadores, na tribuna de honra e na
bancada de imprensa.
As calças são as peças de roupa mais
usadas em todo o mundo. Atualmente usadas por homens e mulheres, ela também já
foi um item exclusivo do estuário masculino.
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